Conto autoral: Um jardim sem flores - Leandro Silvério

Conto autoral: Um jardim sem flores

Edmond é um sujeito extraordinário que vive na pacata cidade de São Luís do Paraitinga, interior de São Paulo. Conhecido por ser um homem de poucas palavras, Edmond segue meticulosamente uma rotina que já perdura por mais de 50 anos. Todas as manhãs, caminha sozinho até o Coreto da Praça, onde existe um Jardim sem Flores, que ano após ano é palco da jornada de milhares de turistas que ali vem aproveitar o Carnaval mais tradicional da região, consagrado pelas marchinhas populares que inspiram alegria e emoção em todos os foliões que circulam pelas ruas e avenidas da cidade nos primeiros meses do ano.

Em meio a essa confusão, Edmond persistia em caminhar até o Jardim sem Flores todas as manhãs. Ficava horas admirando o chão de terra batida, que por vezes preservava as marcas de sapato de alguém que por ali passara, sem atentar-se à placa que dizia encarecidamente: “Por favor, não pise na grama”.

Nos fins de semana, em meio a turistas sazonais, Edmond acordava um pouco mais cedo para caminhar até o Coreto da Praça, na intenção de evitar qualquer tipo de contato com os “Forasteiros”, termo esse que utilizava para descrever àqueles que não eram residentes na cidade e que por alguns dias, ali vinham buscar a paz e tranqüilidade que só o povo do interior pode oferecer.

Alguns finais de semana entretanto, principalmente aqueles que guardavam as festas populares, Edmond abria mão de visitar o Jardim sem Flores tal qual era seu receio de presenciar o enorme descaso dos turistas com aquele estimado pedaço de terra batida que tanto lhe fascinava.

Foi então que no Carnaval de 2010, sem maiores avisos, São Luís do Paraitinga não entoou nenhuma marchinha popular com mensagens de alegria. Naquele ano, a cidade se calou devido uma forte enchente causada pelo transbordamento do rio Paraitinga, que circunda a cidade. A chuva não deu trégua e o Coreto da Praça, junto com seu Jardim sem Flores, a cada dia ficava mais imerso pelas águas, que sem piedade invadiam os quatro cantos da pacata cidade.

O rio subia tanto que Edmond ficava cada vez mais preocupado. Já não tinha mais casa pois as águas haviam tomado. Com alguns móveis velhos fez uma jangada e foi até a o Coreto da Praça, remando com algumas tampas de panela que houvera separado. Ali, não encontrou nem Praça nem Coreto, só água escura e barrenta que a cada minuto parecia querer avançar mais em direção ao telhado das casas, onde as pessoas suplicavam aos ventos que um milagre viesse para lhes salvar.

Inquieto, Edmond lentamente tenta se autoconvencer que merece tudo aquilo. Diz para si mesmo que devido sua arrogância em não valorizar o que de bom sua cidade tinha a oferecer nos tempos áureos, a mesma perdera o sentido e estava sendo destruída para então renascer, porém sem a sua presença. É nesse momento então que Edmond, em uma atitude desesperada, abandona a jangada improvisada e se lança em meio ao rio que já tomara quase toda cidade.

Entre lama e escombros, Edmond fecha os olhos envolto pela água barrenta. Com os ouvidos imersos no líquido viscoso, procura pelo silêncio em seu interior, porém mais uma vez escuta as marchinhas populares que agora se misturavam às batidas de seu próprio coração. É esse momento que Edmond se dá conta que no fundo, gostava de tudo aquilo. Gostava das pessoas, gostava da festa e da alegria dos turistas. Gostava do Coreto da Praça e do Jardim sem Flores, que mesmo sem flores era maravilhoso pois tinha a possibilidade de florescer. Edmond percebe que o que lhe deixava encantado com o Jardim sem Flores era a pura e simples possibilidade de mudar, de transformar-se e de transformar o mundo a seu redor.

Nessa hora, como um clarão que vem dos céus, Edmond decide lutar. Decide que seu fim não será ser devorado por aquelas águas revoltas e na seqüência, como alguém que luta pela própria vida, buscou com todas as forças apoiar-se em todo e qualquer objeto que passasse ao seu redor. Segurou em um cabo de vassoura que capturou com os pés no chão barrento, mas o cabo era muito fino e escorregou entre seus dedos. Tentou se apoiar em uma caixa de isopor que encontrará boiando nas águas, porém ao agarrá-la a mesma se encheu de água e afundou completamente. Foi então que avistou um tronco de árvore flutuando e conseguiu se estabilizar sobre ele. Em cima do tronco, exausto pelas inúmeras tentativas de flutuar com seu próprio corpo, Edmond respirou fundo e agradeceu por estar vivo olhando para o céu, que exibia em tons de azul e branco a paz que aquele momento de forma alguma parecia demonstrar.

A correnteza avançava e cada vez mais longe guiava Edmond, que sobre o tronco de árvore acabara de renascer para o mundo. Em determinado momento da trajetória, já em uma área mais calma do rio Paraitinga, Edmond consegue se aproximar da borda e colocar seus pés em terra firme novamente. Abandona o tronco de árvore que o salvara, caminha até a margem do rio e ao abrir os olhos, percebe que está na Estação de Tratamento de Esgoto Municipal. É exatamente ali então, que recebe um dos maiores presentes que um homem pode receber nessa vida: encontra o mais belo jardim que já houvera visto. Eram tantas as variedades de flores, todas lindas e frondosas, que Edmond sem a menor hesitação deitou, rolou e apreciou calmamente cada uma delas.

O tempo passava devagar naquela Estação de Tratamento de Esgoto, o mundo parecia sorrir novamente para Edmond, que decide então compartilhar tamanha beleza com outras pessoas e para isso, de cada flor recolhe uma muda e lentamente inicia seu retorno até a cidade, dessa vez beirando o rio que com seu movimento desordenado, já não o assustava mais. O rio parecia dançar diante dos olhos de Edmond, que pelo caminho continuava a recolher mais e mais amostras de flores. Sentia-se como quem caminha pelo Jardim dos Deuses, onde a cada passo um novo sopro de vida e felicidade era lançado em seu rosto.

Quando as águas finalmente baixaram, e o cenário de destruição da cidade foi exposto, Edmond descobre o sentido para tudo que acabara de experimentar. Descobre que o motivo de sua experiência é pura e simplesmente compreender o valor das pequenas maravilhas da vida e decide então espalhar belezas por onde andar. Deixa uma muda de flor em cada escombro de construção que encontra pelo caminho, e nas casas destruídas pela enchente, ao deixar a flor deixa também uma mensagem de esperança para a família que ali residia ao afirmar que, assim como aquela flor que hoje espalha beleza e esperança para o novo lar que se reconstrói, a vida também pode florescer mesmo nas mais improváveis e difíceis circunstancias.
Nos dias que se seguiram, Edmond distribuiu todas as flores que havia coletado na Estação de Tratamento de Esgoto, exceto uma, que guardou especialmente para o Coreto da Praça, que bravamente sobrevivera a enchente e, assim como o resto da cidade, necessitava também renascer.

Dia após dia, Edmond espalhou belezas em forma de flores pelas ruas e avenidas da cidade que aos poucos ia se reconstruindo. Já não caminhava mais sozinho até o Coreto da Praça, havia um sentimento de união entre as pessoas. Na medida em que a cidade renascia, o Jardim que antes era sem flores agora emanava vida e belas paisagens. Exibia flores de diversas naturezas, formas e cheiros, esperando ansiosamente para serem apreciadas no próximo Carnaval.

Leandro Silvério.



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